segunda-feira, 23 de maio de 2011

Da mesa posta

O dia amanhece e escuto a chaleira apitar. O café está na mesa. O que nos une por mero acaso, na casa que não nos pertence. A alma vagueia, arranhando o assoalho que construímos. Tilintando os cristais da prateleira, pretejando a prata na gaveta. O que era pra ser. O sonho feliz, o vestido branco, as juras eternas... E nada mais que um café.

Levantei novamente, sem saber o que ela tem. Faço café na medida em que ela gosta: quatro colheres de pó, bem cheias. Cinco de açúcar. A mesa está posta, o pão quente, a manteiga derretendo. Lavo a caneca de louça que mais lhe agrada, aquela que comprei como primeiro presente... Quando tudo ainda era amizade. Voltar é uma questão de tempo, as almas sempre vagueiam.

Não sinto vontade de levantar. Ele não está do meu lado como antes, ou eu vejo coisas distorcidas? O pé quente toca o assoalho frio, e o inverno mal começou. O rastro aponta para o banheiro, o espelho aponta para o fracasso. Os cabelos oleosos, os olhos opacos.

Perdeu-se no brilho que tinha no sentimento tenro na medida em que crescia. Tudo lhe parecia natural no início, a carreira era um plano. Compartilhávamos da mesma fatia, saboreávamos da mesma conquista. Até subir, até alcançar o céu. Era mais que tudo, que os outros, que se perdeu de si. De tanto que quis, teve. E perdeu o brilho nos olhos. Perdeu o sorriso nos lábios. Perdeu a fé em si mesma.

O apoio que tinha já não era o mesmo. Eu queria mais e mais, insaciável. Inabalável. Era questão de crença, e ele não crê – que podemos e conseguimos. As unhas roídas, sinal de desleixo. Roupa amarrotada, cama sem trocar. Já era hora de desvencilhar, cada um seguir o próprio rumo.

Meu único objetivo era estar do lado dela agora.

Já não importa mais quem sou agora. O amor passou.

Ela não crê. Ele não crê.

Do amor que ficou, partiu, restou. As pratas da casa, os cristais no armário. A vida que não se viveu. O egoísmo que trilhou o próprio destino. Sentados, à mesa posta. De café, embora doce, descendo amargo. Daquele gosto que não mais compartilhavam.

Estranhas almas vagando.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Reprovação

É como se o mundo só fizesse sentido naqueles tons, de marrom e roxo. Dois planetas empilhados, um no colo do outro. Como um abraço. Mesclando os tons, fantasiando com um chapéu de palhaço. Olhava para aquela cena tão irreal agora, tão distante; Com os pensamentos vagando. Pelo choro entalado na goela. Pela gotícula querendo saltar, em efusivo suicídio.
Acabara de absorver o que havia me passado. Entrar naquele carro sempre me amedrontou. Ajeitei o banco de modo que alcançasse a embreagem, ajeitei o retrovisor, coloquei o cinto de segurança. Estava pronta. Dei partida, tirei o freio de mão. Era fácil, já fizera repetidas vezes... que não notei a falha tão próxima. Que mal notei minhas mãos trêmulas, meus pés batendo insistentemente no chão do veículo. Justo agora, que queria tanto me livrar desse peso. Desse medo.
Olhei pelo retrovisor, lá estava ele. Uniformizado, usando óculos escuros daquele estilo aviador. Ao encarar, fiquei surpresa. O medo assumia outra forma. De menina assustada, aquela loirinha ali dentro do carro. Errando os passos, perdendo o tempo, eliminando o resquício de equilíbrio que lhe restava.
Pare o carro. Desligue-o. A voz era quase robótica.
A situação já estava longe, sentia o coração parando ao virar a chave. Havia desligado o carro. Me desligado completamente. E veio, aquele moço gigantesco e outro menorzinho, em sinal de solidariedade com a colega que acabara de conhecer, tentando proferir algumas palavras de conforto. O abraço coletivo e o desejo de boa sorte até poderia comover aquela estátua. Aquela cena congelada. O conforto que não veio. A frustração agora, sentada ao meu lado naquela lanchonete dividia comigo um sorvete. Sorvete de uva ao creme e brigadeiro. O palhacinho que sorria para mim. O reflexo que zombava de mim. Aquele medo velho conhecido.