quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Dente de leite

Eles pareciam tão simpáticos para os outros, até conhecê-los o suficiente para saber a roubada em que fui arremessada. É, arremessada. Eu não queria isso para mim, não queria ir até lá. Aquela sala fria, o eco da televisão ensurdecendo meus ouvidos já acariciados pelo vento. Sentado atrás da mesa, o juiz que declarou minha escravidão temporária.
Primeiramente me fez acreditar que aquela seria minha única salvação – estava decretado. Tola, ou talvez guiada pela maneira convincente exposta pelo ditador, arrisquei. Sofrendo as consequências dolorosas de arriscar-me em busca de uma razão a mais para sorrir. Agora talvez meu sorriso esteja ofuscado, e a culpa foi de minhas decisões, meticulosamente estudadas e colocadas em prática em uma plena sexta-feira.
Repousando naquela poltrona confortável, discutíamos a respeito da insanidade que a temperatura se submetia, certos de que estaria surtando pela região naquele final de semana de maio. A competição de futebol no sábado não seria a mesma, não com aquele frio cortante. Agasalho seria a solução para este caso, embora o caso que eu estava a vivenciar exigisse mais que um moletom. As luzes me cegaram, estacionei boquiaberta em algum comentário aleatório, e foi então o ponto de partida.
A claridade me impedia de decodificar os sorrateiros vilões a minha espreita. Inicialmente uma injeção, com algum líquido cor de agonia. Depois, exceto pelo frio, não sentia absolutamente nada. O que fariam comigo ali? Eu voltaria para casa? Se voltasse, com certeza seria muito diferente desde então. Depois de esvaziar meus sentidos, acorrentaram meus amigos que trajavam roupas de um pérola reluzente. Em tentativas inúteis de clamar um pedido de socorro, foram enrolados com um arame na doce ilusão de que ficariam melhores de alguma forma. O ferro que viria a machucar-me também, e eu mal suspeitava.
Já os tinha perdido uma vez, não ousaria mais falar se isso voltasse a acontecer. Não pela falta de fala, mas pelo significado que as coisas teriam a partir dessa despedida. Depois de estarem imobilizados, veio a decoração inconveniente a qual foram submetidos, escolhidos por mim, que decidi neutralizar as inúmeras colorações que haviam de cobri-los. Da doce pérola que já expressaram tantos momentos de felicidade, surgiu o preto e o branco, dando espaço para o desprezado sonho de um dia sorrir novamente. Condenados.
Já tinha visto tantos casos de desleixo com os amigos perolados, mas eu, que tinha um carinho imenso por eles, acabei entregando-os de bandeja a uma ideia mal formulada, pautada na necessidade de sobrevivência do homem que me recebeu com um aperto de mão. Este, que prometeu um curto tempo para que eu me acostumasse em tê-los tão diferentes. A essência poderia ser a mesma, mas eles nunca mais seriam aquela infância ou adolescência. Crueldade de minha parte condená-los assim, justamente quando aparentava cuidar tão bem dos pobres meninos.
Péssima educação, embora a culpa não fosse total minha, afinal, eu não queria que eles começassem a brigar por conta de uma invasão de espaço. Mas se ultrapassaram os limites, tiveram que arcar com as consequências dolorosas que vieram posteriores à discussão. No final da história, quem arcou com todos os sentidos depois do efeito da agulhada fui eu mesma. Um acerto de contas, um aceno de cabeça, uma olhada no espelho – não me reconheceria mais por alguns dias. E a notícia tão estrondosa: os vizinhos ainda vestidos com o antigo uniforme sofreriam por conta de um plano bolado pela escala debaixo, que não quis sofrer sozinha. Foram agraciados com mais uma semana de liberdade.
Quanto a mim, sentindo minha carne sendo esbagoada pelo remorso de ter sido brutalmente arremessada para essa decisão e conclusão dramática, passei a odiar os então aparelhos dentários.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

De volta para o presente

Em resistência à gripe que atormentava a população, eu passava álcool nas mãos e retornava à sala de aula. Seguia pelo corredor porcamente iluminado observando o frio domando minha pele que eu já não sentia mais. Gélida, da mesma forma que o clima se encontrava aquela semana – em especial a sexta-feira sem cara de sexta-feira.
Sim, o dia tão almejado por tantos em busca de um descanso. Para mim, a data era ímpar por outro motivo que eu mal sabia explicar. Esquerda e direita, frias não por conta da substância em contato - percebi o corpo inteiro tremendo com a temperatura baixa – não de frio, notei. Era medo, mais uma vez me consumindo.
Decidi que agora seria diferente, tudo daria certo desta vez. Minha inspiração estava de volta.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Do outro lado

A sombra do outro lado
No parapeito da janela
Um reflexo, destelhado

O tec tec das palavras
Máquina de escrever
Os cabelos esbranquiçados
Sinal do tempo, aparecendo

Escreve? Não sei dizer
Observa-me
Há tempos, tentando entender

O que és? Poeta?
- Trilho minha estória,
Observador nato,
Navegador da vida!

Proclama então, escrita
Registro de um monólogo
Reflete o que quis ver

Adoece! Maremoto, calvície!
O tempo, ah tempo!
Dê-me algum registro,
Mais alguns dias
- Sou só, escrevo, escravo, relato,
Mais nada.

domingo, 9 de agosto de 2009

Vou de táxi...

Era mal daqueles jogos que eu teimava em acompanhar, dizia minha mãe.
- Menina, você sempre volta doente depois desse futebol!
Talvez fosse verdade, ou só uma de tantas outras coincidências, afinal, eu nem sequer jogava. Que dirá gritar em tom de torcida animada. Acompanho nem eu sei por que, mas eu estava lá. E a doença cá.
Agora, aqui, com um vírus instalando-se e movendo a temperatura do corpo para um calor incomum. Foi o que disse um amigo que forjava a medicina. As coisas giravam, embora o corpo quente, eu ainda sentia frio. Doía até o osso, os calafrios começaram a me consumir. Resolvi aconselhada pela desistência, que estar em casa na companhia de um edredom e uma xícara de chá seriam a solução apta para uma pseudo doença. Eu não aguentava mais ficar ali, e isso eu sabia muito bem.
Entreguei meu trabalho digitado, sobre uma história infantil que eu tinha achado, embora inteligente, desnecessária para o andamento da aula que mal existia. Era uma daquelas horas em que você não absorve absolutamente nada do que lhe é passado. Pelo menos eu me sentia assim. Juntei meu material, sai da sala e liguei para um táxi vir me buscar – ah, terrível não ter um carro na mão. Ta achando ruim? Nem idade pra dirigir eu tinha. Depois de uma breve discussão para decidir o portão de embarque, caminhei até o meu destino. Portão um.
Fiquei escorada na grade em frente à rádio por uns vinte minutos, e nenhum sinal da minha carona. Liguei para confirmar o envio do automóvel. A voz do telefonista era tão similar àquela que eu daria tudo para ouvir naquele instante, que a semelhança bastou para aliviar minha raiva diante da demora. Paciente, aguardei. Não demorou tanto, apareceu. Carro branco, dizeres em letras azuis destacaram-se. Entrei,
- Boa noite – cumprimentei o motorista.
- Boa noite, me desculpe pela demora! – respondeu o condutor.
- Que isso... – foi o que consegui dizer, então.
- Pra onde?
- Martin Afonso, três meia cinco, por favor.
- Sabe o melhor caminho para se chegar lá?
Pensei um pouco, ele é taxista, deveria saber por onde ir, não deveria?
- Não, não faço idéia – disse.
- Sabe pelo menos onde é o lugar?
Era minha casa, eu provavelmente deveria saber para onde estava indo. A febre fez sobressair a razão? Ainda não, espero.
- Sei sim.
Fiquei olhando para fora, os universitários em suas devidas aulas após intervalos tão apressados em passar. As luzes da cidade cintilando, era tudo tão bonito. Eu adorava minha cidade, ah, como gostava! Passar de ônibus frente à igreja cartão postal era uma das minhas cenas favoritas durante a semana. Fui prestar atenção na música ao fundo, nem tinha notado o rádio ligado. Com absoluta certeza eu diria “Abba!”, se não fosse a cópia feita por aquela artista loira, tão consagrada rainha do pop. Só o comecinho, mas foi o suficiente. Era uma de tantas outras músicas do Abba que eu gostava – ora, como eu tinha facilidade em gostar. Do que não gostava? Difícil dizer. Fui ouvindo, e para variar, meus pensamentos fluindo, moldando textos em minha mente, que infelizmente perderam-se meio aos outros pensares que substituíram a ideia em foco.
Estava acontecendo exatamente isso. Os focos mudando. Eu e minha lentidão, sempre caminhando abraçadas, nem prevíamos isso. Só notei quando o meio caminho simplesmente foi percorrido.
- Opa! Esqueci de ligar o taxímetro! – a observação emergiu daquele silêncio tão reconfortante.
- Haha, desconto então? – arrisquei.
- É, desconto pro cliente!
- Como funciona um taxímetro? – porque é que eu nunca conseguia ficar quieta? Não era hora de a minha timidez sair a passear.
- Funciona com base nos quilômetros rodados e na velocidade.
Quilômetros e velocidade? Mas não daria na mesma? Eu teria que pagar tudo no final, de qualquer forma.
E as luzes passavam, ao piscar de meus olhos semicerrados. O calor ainda domava minha mente, as ideias ardiam. Cheguei ao ponto tão almejado. De partida, de saída, de recordar. Desci, arrastei-me por três andares de escada, assustei minha mãe por chegar mais cedo. Despi aquela vestimenta carregada, ainda insistia em me fantasiar de mendiga quando chegava ao lar doce lar – era confortável ao menos. Doses e mais doses de remédio, sabia que nenhum faria efeito. A doença era da alma, não do corpo – que mal parava de pé. Abri a janela, fitei o céu por alguns instantes. Doce brisa. Desabei encarando o teto, com a música do táxi em mente, fazendo filmes e mais filmes se repetirem diante de mim. Fechei os olhos.
Não existia mais calor em excesso, janela, música ou teto. Jamais existiu.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Teatro individual

Fugindo temeroso do vento frio cortando meu rosto, as luzes da cidade pareciam moldar o cenário mais depressivo que eu presenciara na altura de meus 27 anos.
Sujo e arremessado na desesperança inquietante, quem eu era? Um projeto de ator impossibilitado de atuar na principal peça de minha carreira: a vida. Jogada às traças, era mais simples interpretar o psicológico de alguém já pronto. Eu male má possuía um perfil que me descrevesse. Ouvi a vida intera, “Jonathan, menino, vá viver”. Não era bem assim, mas só eu compreendia. Órfão desde os catorze, oprimido e injustiçado. Eu só não era a vítima quando o personagem não exigia – ou existia.
Seria real a situação? Pela primeira vez em tanto tempo eu sai do quarto da pensão para tomar um ar. O bairro distante do centro, do agito, dava a incrível visão dos prédios ao longe, todos tristes. Azuis. Eu cantarolava a calmaria de uma Bossa Nova. Inaugurando uma vida nova.
Sem premeditar do lado escuro da rua, um grito arrepiou a noite. Ao chão, meus pés eram domados pelo liquido carmim. Um corpo, três tiros e um fugitivo. Em minhas mãos a prova do crime, pobre desfalecido. O que eu fizera? Uma lacuna em minha mente, e em vão eu tentava remodelar a sequência dos acontecimentos até meus ouvidos detectarem uma sirene ao fundo.
Mas tenha misericórdia, eu não consegui ver o semblante do culpado. Por isso levaria a culpa? Observei o corpo ao chão, já desbotado, coitado. Aparentava ser menor de idade. Motivo da morte? O de sempre, um viciado.
Os homens então chegaram, analisando a cena: um cadáver, um culpado e uma arma. Visão turva, tendenciosa e sem vida. As algemas tão frias quanto às luzes da cidade, quanto ao espírito vagando sem esperança alguma. Era minha condição de espírito.

CORTA!