terça-feira, 28 de julho de 2009

Vinte e três

Vinte e três de maio. Entro no elevador em um sábado qualquer, aparentemente. Na esperança de ver refletido meu rosto em trégua com o sono, o espelho da máquina era ofuscado por um dizer grande de luto. Analisando o comunicado, senti que o serviço fora feito com precisão. Doce senhora do 102, sempre tão simpática. O rosto atingido pelo tempo, os cabelos exibindo um caráter de idade, o prateado sempre ajeitado em um corte chanel contrastando com os óculos postos. Olhar atento. Levava uma vida normal, sempre regando as plantas pela manhã – nunca as deixara na mão. Com o marido a viajar, era solitária durante a semana. E agora? A flor que simbolizava a vida havia murchado.
Visão triste ao observar o esposo atirado por cima do caixão, em uma frustrante tentativa de fazê-la permanecer. A lágrima nos olhos, a expressão de ingratidão por me ver ali. Sequer via, talvez sentisse a dor dilacerando a carne, as lembranças alfinetando o que deveria, por hora, cair no esquecimento. Mais cruel que a morte, somente a vida. Só os que se deixam levar pela aquisição de minuciosos quadros de memória é que se machucam depois. Definhar não dói, imagino – se o faz, não há meio de recordar o ardor de morrer posterior a ruína.
Morte. Temida, injustiçada, sofredora dos pecados alheios por simplesmente fazer o que lhe é designado. Pior que isso, quando não há serviço que tenha de ser feito e o fazem no lugar. Acidentes, descuidos, desculpas. Bastou para atirarem a Morte em uma fogueira de palavrões, ressentimentos. Juram vingança e então eu desapareço. Não era de meu feitio acompanhar aqueles que sofriam a perda, mas a consciência me fez permanecer. E ficando, acabei por assistir as consequências de transitar em um mundo paralelo ao meu. Era sem querer, juro! Apenas chegava a hora, o nome em lista, o chamado – e então o sofrimento dominava os entes queridos. Era o que destacava aquele senhor, tão passado pelo tempo quanto a falecida, que já nada tinha a fazer. Digo, vontade era o que faltava, perdeu-se a razão, eu o desprovi de razão. Arremessei o condenado frente ao juízo perfeito, quando o desejo era estar ao juízo final, lado a lado com a esposa.
Uma semana recebendo visitas sem entender a atmosfera que o cercava. Dia e noite sem cansar eu fitava aquele corpo imóvel da extremidade do quarto de hóspedes. Nem no quarto de casal tivera coragem de botar os pés. E ficava ali, estirado no colchão de mola já empoeirado, mergulhado em um cômodo tom sépia, com cortinas amareladas e o guardarroupa exalando naftalina. As horas apressadas pouco significavam para quem teve a vida sugada pela terra. A lembrança do espelho me fez estremecer - eu não queria levá-lo para baixo como fizera com sua metade. Mas o prelúdio deu-se quando o senhor resolveu sair da quarentena.
Respirou fundo, colocou o pé direito ao chão - a sorte dependeria disso. Caminhou ronceiramente até a cozinha, abriu a janela. Talvez visse a luz no fim do túnel se fosse provido de ventura. Em uma tentativa de retomar as atividades, chegou até a sacada a fim de regar as plantas – não tinham culpa, pobrezinhas. Foi então que a fraqueza tomou as rédeas da situação. E quando digo que crueldade não é meu lema, descuidos acontecem. Um desmaio prévio, afinal, todo aquele tempo sem comer indicaria o carma. O que não previ foi o vaso ao chão chocando-se com a cabeça embalada por fios tão brancos quanto algodão. Algodão que foi encharcado por um vermelho vivo, acabando por enxaguar o piso com a tonalidade mórbida.